Esse é o link para o seu blog, com toda a entrevista:
http://clevanepessoaentrevistas.blogspo
Como o texto é longo, eu o dividi em pedaços menores.
1- Sabemos que você, durantes os anos do Militarismo no Brasil, viveu clandestino. Fale um pouco da experiência de não poder usar o nome, voltar para casa, etc.
A clandestinidade era um meio para se atingir um fim: a derrubada do regime. De 71 a 73 fui diretor da UNE, sob a presidência de Honestino Guimarães. Depois disso tentei me integrar ao movimento operário, mas perdi o contato com o partido em 75 e permaneci assim até 79. Havia sido preso em maio de 71 e estava sendo procurado pelos órgãos da repressão. A perspectiva que tínhamos na época é que a luta contra o regime seria dura e prolongada. Alguns companheiros, de brincadeira, costumavam marcar encontros para o ano 2000, em Brasília, quando já estaríamos no poder.
Sabia que vários companheiros haviam sido presos tentando contatar a família. Foi o que aconteceu com José Carlos da Matta Machado, assassinado em seguida. Outros foram presos ao tentar recomeçar os estudos ou conseguir um emprego com o nome verdadeiro.
Eu conseguia me comunicar com a família através de cartas, que seguiam um longo caminho. Tinha plena consciência que tão cedo não poderia revê-los e nem usar meu nome verdadeiro, era uma conseqüência inevitável da minha militância.
2 - Como foi viver na clandestinidade? Que tipos de apuros passou?
Vivi a maior parte do tempo em pensões, quartos alugados e, durante uns meses, com uma família de nordestinos que trabalhavam numa indústria de móveis em São Paulo. Levei alguns sustos, porque a caída (prisão) de alguém era sempre uma ameaça em potencial à minha segurança. Em 73, tive que abandonar o Rio Grande do Sul às pressas, porque quase todos os meus contatos haviam sido presos.
Meu maior susto foi em 71. Estava num apartamento no Leblon, no Rio, e ainda não tinha uma identidade falsa. Um dia bateram à porta. Abri e um senhor de meia idade se identificou como sendo da Polícia Federal. Ele estava à procura de um tal de O’Reilly.
O apartamento tinha uma biblioteca (uma estante de tábuas e tijolos) cheia de livros marxistas e alguns romances. Dei tanta sorte que ele pegou um livro para examinar e escolheu um romance inofensivo. Em seguida pediu minha identidade e perguntou o que estava fazendo no Rio. Disse que estava morando com um amigo, enquanto estudava para o vestibular de economia.
Pelo visto, ele não acreditou muito em minha história e disse que eu teria que acompanhá-lo. A escada era em caracol, muito íngreme e de curvas muito fechadas. O apartamento ficava no terceiro ou quarto andar. Eu calculei que se saísse correndo na frente ele não teria visão para atirar.
Desci embalado, acelerando cada vez mais a cada volta. No último andar não consegui frear. A escada terminava em frente à entrada de serviço de outro apartamento. Com o impulso, arrombei a porta. Mal tive tempo de pegar os meus óculos no ar e não pude ver a cara da empregada, que estava com o forno aberto. Só a escutei gritando: “ai meu Deus, o que é isso!”.
Continuei correndo até a rua, dobrei o quarteirão e peguei um táxi. Eu tinha um ponto (encontro com data e hora pré-determinados) mais tarde e passei o resto do dia fazendo hora. O pé inchou, uma série de vasinhos se rompeu. Fiquei com anéis roxos em volta dos dedos dos pés e tive derrames até na dobra do joelho. Não quebrei nada, mas a luxação me deixou umas semanas sem poder andar direito.
3 - Dessas vivências, restou alguma crise de identidade?
Não, até penso que acabei me enriquecendo com novas visões. Convivi com operários e lumpen-proletários em pensões e bairros da periferia. Uma vez aconteceu um fato engraçado. Eu trabalhava como apontador para uma indústria de móveis em São Paulo - a fábrica de Móveis Pastore. Fui selecionado para fazer um teste. Eu iria fazer um curso para cronometrista. A prova era na Avenida Paulista, num prédio cheio de carpetes e vidros fumê. No dia marcado, não pude ir porque havia quebrado os meus óculos.
Finalmente, quando pude fazer o teste, fiquei junto com uma turma de engenheiros da Politécnica de São Paulo. Pedi um lápis para a psicóloga e ela me arrumou um com a ponta toda rombuda. Eu estava mal vestido e ela estava claramente me discriminando. Eu não pretendia me destacar, mas acho que a raiva me fez caprichar. Era um teste de raciocínio lógico abstrato, a minha praia.
Moral da história: pouco tempo depois, pedi demissão da empresa, porque iria para o Rio de Janeiro. Eles fizeram questão de me segurar, ofereceram um aumento e acabaram revelando a causa: eu havia conseguido a maior pontuação no teste. Para a psicóloga, deve ter sido uma demonstração prática de que as aparências enganam. Para mim, foi uma doce vingança.
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