domingo, 29 de agosto de 2010

Propostas para a Cultura


Maiakóvski escreveu "Conversa sobre poesia com o Fiscal de Renda". Como poeta e fiscal de renda, achei oportuno retomar algumas discussões que esse poema levanta. O texto integral está nesse link:
http://schopenhauerperde.blogspot.com/2008/01/vladmir-maiakvski-1893-1930.html


No preâmbulo, Maiakóvski declara que veio tratar do “lugar do poeta na sociedade proletária”. Devemos entendê-lo em termos mais amplos, como um diálogo entre o artista e o poder.

“O meu trabalho a todo o outro trabalho é igual”. Marx criou a categoria de trabalho humano abstrato – dispêndio de energia humana, sem levar em conta como essa energia é dispendida. O artista, visto por esse prisma, integra a força de trabalho geral. Não houve, até hoje, sociedade em que a utilidade de seu trabalho fosse negada.

Mesmo na antiga União Soviética, onde poetas foram presos como parasitas, acusados de não trabalharem, a União dos Escritores garantia que seus membros recebessem uma remuneração adequada. A fórmula de cálculo levava em conta a tiragem e o número de páginas, entre outros fatores.

Essa é a reivindicação mais básica que pode haver. Sermos reconhecidos como trabalhadores. Com toda a implicação legal e todos os direitos que essa condição acarreta.

Maiakóvski salienta as dificuldades desse trabalho. “Onde encontrar, e a que tarifa, uma rima que mira e mate de uma vez? Dela talvez ainda sobrevivam cinco exemplares nos confins da Venezuela... Cidadão, condescenda, as passagens são caras! A poesia – toda – é uma viagem ao desconhecido.”

Uma vez encontrada a palavra certa, ela resplandece. “Essas palavras põem em luta milhões de corações por milhares de anos.” Ao poder soviético, não passou despercebida essa virtude. Zhdânov, o inventor do realismo socialista, proclamou que os escritores eram “engenheiros de almas”.

Esse é o grande perigo entranhado na relação entre o artista e o poder. Maiakóvski não era de maneira alguma hostil à nova sociedade. No entanto, foi tachado de ‘incompreensível para as massas”. A menina dos olhos do regime era o cinema, que atingia milhões. Mesmo essa arte de massas, sofreu com a ingerência estatal. O coração de Eisenstein não resistiu aos críticos tacanhos, que queriam uma revolução social, mas não toleravam a quebra de um cânone artístico, estabelecido por algum burocrata com veleidades intelectuais.

A arte, ainda que o artista tenha uma profunda preocupação social, não pode ser tutelada.

Por outro lado, há artistas que vêem no poder o Mecenas obrigado a subsidiar a sua genialidade. É comum esse artista lidar mal com as exigências burocráticas. O próprio Maiakóvski estava em dívida com o fisco. São conhecidos, no Brasil, vários casos de mau emprego de verbas públicas destinadas à cultura.

Toda relação entre o artista e o poder deve ser transparente.

Maiakóvski nunca pretendeu um lugar privilegiado para o artista na sociedade. Nunca fugiu do papel social de sua arte. “A nossa dívida é uivar com o verso, entre a névoa burguesa, boca brônzea de sirene. O poeta é o eterno devedor do universo e paga em dor porcentagens de pena.”

“Tudo o que quero é um palmo de terra ao lado dos mais pobres camponeses e obreiros” Modesto em suas exigências pessoais, certamente, ele atribuía à arte um papel privilegiado. “A palavra do poeta é a tua ressurreição, a tua imortalidade, cidadão burocrata. Daqui a séculos, do papel mudo, toma um verso e o tempo ressuscita.”

Ao lado desse caráter transcendente, a arte pode ter um alcance imediato. “... a rima do poeta é carícia, slogan, açoite, baioneta”. Maiakóvski não hesitou em fazer cartazes para ajudar no combate à difteria, nem temeu ser chamado de “o poeta da água fervida”. Defendeu, entretanto, com unhas e dentes o ofício do artista.

“Porém, se vocês pensam que se trata apenas de copiar palavras a esmo, eis aqui, camaradas, minha pena, podem escrever vocês mesmos.”

Nesses tempos de banalização geral, uma tarefa se impõe.

É necessário reafirmar o papel essencial da arte perante a sociedade.

A intenção de reviver esse poema de Maiakóvski, trazendo-o para os dias atuais, foi de balizar algumas idéias básicas. O nosso mandato será fruto de uma elaboração coletiva. Outras questões devem surgir, e estas idéias serão mais bem aclaradas. Este é apenas um ponto de partida, uma provocação.

A escolha do texto é também a confissão de uma influência. Maiakóvski estava constantemente se dirigindo a um público futuro. Ou dialogando com poetas passados, como o fez com Puchkin, no centenário de sua morte. E é o gancho perfeito para submetê-los a esse poema.

Conversação do fiscal de rendas sobre poesia

Há em mim um carniceiro

Que se alimenta da carcaça dos versos apodrecidos

Um açougueiro

Que vende em postas a carne quente dos poemas


Sem silicone, sem botox

Só a crueza do aço inox


Sei apenas que não ousaria tocar

Na unha suja do dedão do pé de Mítia Karamázov

Nunca faria lipoaspiração nas Três Graças

Nem photoshop no auto retrato de Rembrandt



Tudo mais é permitido

Em algum lugar do Brasil

Dizem que há uma repartição

Lá se vendem licenças poéticas



Há outra ainda

Onde sou um modesto fiscal de rendas

Que assinaria sem piscar

O auto de infração de Maiakóvski

E depois, para o consolar, lhe pagaria

Um traçado de cachaça com jurubeba


Ah, esses poetas de gravata amarela

Que não agüentam uma prensa

Qualquer ditadurazinha os derruba

Por qualquer vagaba eles se matam


Menos sensibilidade, camaradas poetas

Nada de cortar as artérias

A nossa intervenção há que ser cirúrgica

Somos apenas velhas parteiras

Induzindo a vida a parir poesia


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